Problema de valor inicial

Em matemática, um problema de valor inicial ou problema de condições iniciais ou problema de Cauchy é uma equação diferencial que é acompanhada do valor da função objetivo em um determinado ponto, chamado de valor inicial ou condição inicial. Em física, biologia e outras áreas, a modelagem de um sistema frequentemente resulta em um problema de valor inicial (também chamado de P.V.I.) a ser solucionado; nesse contexto, a equação diferencial é uma equação evolutiva especificando como o sistema evoluirá ao longo do tempo dadas condições iniciais.

Definição

Um problema de valor inicial (P.V.I.) é uma equação diferencial da forma

{ y ( t ) = f ( t , y ( t ) ) y ( t 0 ) = y 0 {\displaystyle {\begin{cases}y'(t)=f(t,y(t))\\y(t_{0})=y_{0}\end{cases}}}

Uma solução para um P.V.I. é uma função y {\displaystyle y} que é solução da equação diferencial e satisfaz y ( t 0 ) = y 0 {\displaystyle y(t_{0})=y_{0}} .

Em dimensões superiores, a equação diferencial é substituída por uma família de equações y i ( t ) = f i ( t , y 1 ( t ) , y 2 ( t ) , , y n ( t ) ) {\displaystyle y_{i}'(t)=f_{i}(t,y_{1}(t),y_{2}(t),\dotsc ,y_{n}(t))} , e y ( t ) {\displaystyle y(t)} é um vetor n-dimensional da forma ( y 1 ( t ) , y 2 ( t ) , , y n ( t ) ) {\displaystyle (y_{1}(t),y_{2}(t),\dotsc ,y_{n}(t))} . Mais geralmente, y {\displaystyle y} pode assumir valores em espaços de dimensão infinita, como o Espaço de Banach ou o espaço de distribuições.

P.V.I.s podem ser analisados em ordens superiores tratando as derivadas como uma função independente, e.g. y ( t ) = f ( t , y ( t ) , y ( t ) ) {\displaystyle y''(t)=f(t,y(t),y'(t))} .

Existência e unicidade de soluções

Para uma grande classe de P.V.I.s, a existência e unicidade de uma solução pode ser ilustrada através do uso de uma calculadora.

O teorema de Picard-Lindelöf garante a unicidade da solução em um intervalo que contém t0 se f é continua em uma região contendo t0 e y0 e satisfaz a condição de Lipschitz na variável y.

A prova desse teorema provem de uma reformulação do problema como uma equação integral equivalente. A integral pode ser considerada como um operador que transforma uma função em outra, de modo que a solução é um ponto fixo do operador. O teorema do ponto fixo de Banach é evocado para mostrar que existe um único ponto fixo que é solução do P.V.I..

Uma prova antiga do teorema de Picard–Lindelöf constrói uma sequência de funções que convergem para a solução da equação integral, e assim, para a solução do P.V.I.. Essa construção é chamada às vezes de "método de Picard" ou "método de aproximações sucessivas".

Hiroshi Okamura obteve uma condição necessária e suficiente para a solução do P.V.I. ser única. Essa condição tem a ver com a existência de uma função de Lyapunov para o sistema de EDOs.

Em algumas situações, a função f não é de classe C1, ou mesmo Lipschitz continua, então o resultado usual garantindo a existência local de uma solução única não se aplica. No entanto, o teorema de existência de Peano prova que mesmo para f meramente contínua, existem soluções locais; porém não há garantia de unicidade.[1][2]

Exemplos

O problema de condição inicial

{ d y d x = y y ( 0 ) = 2 {\displaystyle {\begin{cases}{\frac {dy}{dx}}=y\\y(0)=2\end{cases}}}

Resolução

d y d x = y {\displaystyle {\frac {dy}{dx}}=y}
d y d x y = 0 {\displaystyle {\frac {dy}{dx}}-y=0}

Pelo método do fator integrante, multiplica-se esta equação por e x {\displaystyle e^{-x}} :

e x d y d x e x y = e x 0 {\displaystyle e^{-x}{\frac {dy}{dx}}-e^{-x}y=e^{-x}0}

O primeiro lado da equação pode ser simplificado usando a regra da cadeia d ( f × g ) d x = d f d x × g + f × d g d x {\displaystyle {\frac {d(f\times g)}{dx}}={\frac {df}{dx}}\times g+f\times {\frac {dg}{dx}}}

d ( y e x ) d x = 0 {\displaystyle {\frac {d(ye^{-x})}{dx}}=0}

Integrando os dois lados da equação, obtém-se:

y e x = c 1 {\displaystyle ye^{-x}=c_{1}}

com c 1 {\displaystyle c_{1}} constante.

Isolando y, obtém-se então infinitas soluções para a equação diferencial, por causa da arbitrariedade de c 1 {\displaystyle c_{1}} :

y ( x ) = c 1 e x {\displaystyle y(x)=c_{1}e^{x}}

Porém, só existe uma única solução que satisfaz as condições iniciais:

y ( 0 ) = c 1 e 0 {\displaystyle y(0)=c_{1}e^{0}}
2 = c 1 {\displaystyle 2=c_{1}}

Portanto, a solução (única) do P.V.I. é:

y ( x ) = 2 e x {\displaystyle y(x)=2e^{x}}

Oscilador harmônico

No caso de um sistema massa-mola sem atrito e sem força externa atuando, ao aplicar-se a segunda lei de Newton, obtém-se a seguinte relação:

m a ( t ) = k x ( t ) {\displaystyle ma(t)=-kx(t)}

Ou seja:

m d 2 x ( t ) d t 2 = k x ( t ) {\displaystyle m{\frac {d^{2}x(t)}{dt^{2}}}=-kx(t)}

Onde m {\displaystyle \textstyle m} é a massa do oscilador, x {\displaystyle \textstyle x} é o deslocamento dessa massa em relação ao ponto de equilíbrio e k {\displaystyle \textstyle k} é a constante da mola.

Um dos métodos de se achar a solução dessa equação diferencial é usar transformada de Laplace. Aplicando a transformada de Laplace em ambos os lados da equação, obtém-se o seguinte:

m L { d 2 x ( t ) d t 2 } = k L { x ( t ) } {\displaystyle m{\mathcal {L}}\left\{{\frac {d^{2}x(t)}{dt^{2}}}\right\}=-k{\mathcal {L}}\{x(t)\}}

Usando as propriedades da transformada de Laplace, a equação segue escrita como:

m ( s 2 L { x ( t ) } s x ( 0 ) d x d t ( 0 ) ) = k L { x ( t ) } {\displaystyle m\left(s^{2}{\mathcal {L}}\{x(t)\}-sx(0)-{\frac {dx}{dt}}(0)\right)=-k{\mathcal {L}}\{x(t)\}}

De onde pode-se isolar o termo L { x ( t ) } {\displaystyle {\mathcal {L}}\{x(t)\}} :

m s 2 L { x ( t ) } m s x ( 0 ) m d x d t ( 0 ) = k L { x ( t ) } {\displaystyle ms^{2}{\mathcal {L}}\{x(t)\}-msx(0)-m{\frac {dx}{dt}}(0)=-k{\mathcal {L}}\{x(t)\}}
m s 2 L { x ( t ) } + k L { x ( t ) } = m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) {\displaystyle ms^{2}{\mathcal {L}}\{x(t)\}+k{\mathcal {L}}\{x(t)\}=msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}
( m s 2 + k ) L { x ( t ) } = m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) {\displaystyle (ms^{2}+k){\mathcal {L}}\{x(t)\}=msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}
L { x ( t ) } = m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) m s 2 + k {\displaystyle {\mathcal {L}}\{x(t)\}={\frac {msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}{ms^{2}+k}}}
L { x ( t ) } ( m s 2 + k ) = m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) {\displaystyle {\mathcal {L}}\{x(t)\}(ms^{2}+k)=msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}
L { x ( t ) } = m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) m s 2 + k {\displaystyle {\mathcal {L}}\{x(t)\}={\frac {msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}{ms^{2}+k}}}

Aplicando a transformada inversa de Laplace, obtém-se:

L 1 { L { x ( t ) } } = L 1 { m s x ( 0 ) + m d x d t ( 0 ) m s 2 + k } {\displaystyle {\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\mathcal {L}}\{x(t)\}\right\}={\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\frac {msx(0)+m{\frac {dx}{dt}}(0)}{ms^{2}+k}}\right\}}
x ( t ) = x ( 0 ) L 1 { m s m s 2 + k } + d x d t ( 0 ) L 1 { m m s 2 + k } {\displaystyle x(t)=x(0){\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\frac {ms}{ms^{2}+k}}\right\}+{\frac {dx}{dt}}(0){\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\frac {m}{ms^{2}+k}}\right\}}
x ( t ) = x ( 0 ) L 1 { s s 2 + k m } + d x d t ( 0 ) L 1 { 1 s 2 + k m } {\displaystyle x(t)=x(0){\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\frac {s}{s^{2}+{\frac {k}{m}}}}\right\}+{\frac {dx}{dt}}(0){\mathcal {L}}^{-1}\left\{{\frac {1}{s^{2}+{\frac {k}{m}}}}\right\}}

Utilizando uma tabela de transformadas, a equação se escreve:

x ( t ) = x ( 0 ) c o s ( k m t ) + m k d x d t ( 0 ) s i n ( k m t ) {\displaystyle x(t)=x(0)cos\left({\sqrt {\frac {k}{m}}}t\right)+{\sqrt {\frac {m}{k}}}{\frac {dx}{dt}}(0)sin\left({\sqrt {\frac {k}{m}}}t\right)}

Logo, é necessário definir as condições iniciais x ( 0 ) {\displaystyle x(0)} e d x d t ( 0 ) {\displaystyle {\frac {dx}{dt}}(0)} .

Circuito RLC com pulso de amplitude V 0 {\displaystyle \textstyle V_{0}}

A equação que descreve tal circuito é dada por:

Potencial a um pulso unitário de amplitude 100V
V ( t ) = V 0 ( u ( t a ) u ( t b ) ) {\displaystyle V(t)=V_{0}(u(t-a)-u(t-b))}

Onde u ( t ) {\displaystyle \textstyle u(t)} é a função de heaviside

V ( t ) {\displaystyle \textstyle V(t)} é dada pela Lei das malhas Kirchhoff como:
V ( t ) = L d i ( t ) d t + R i ( t ) + 1 C q ( t ) {\displaystyle V(t)=L{\frac {di(t)}{dt}}+Ri(t)+{\frac {1}{C}}q(t)}

Dados L = 1 H {\displaystyle \textstyle L=1H} , R = 2 Ω {\displaystyle \textstyle R=2\Omega } e C = 1 F {\displaystyle \textstyle C=1F} temos:

d i ( t ) d t + 2 i ( t ) + q ( t ) = V 0 ( u ( t a ) u ( t b ) ) {\displaystyle {\frac {di(t)}{dt}}+2i(t)+q(t)=V_{0}(u(t-a)-u(t-b))}

Derivando ambos os lados da equação em relação ao tempo, obtemos:

d 2 i ( t ) d t 2 + 2 d i ( t ) d t + i ( t ) = V 0 ( δ ( t a ) δ ( t b ) ) {\displaystyle {\frac {d^{2}i(t)}{dt^{2}}}+2{\frac {di(t)}{dt}}+i(t)=V_{0}(\delta (t-a)-\delta (t-b))}

No passo anterior utilizamos o fato de que a derivada da função de heaviside u ( t ) {\displaystyle \textstyle u(t)} é a função delta de Dirac δ ( t ) {\displaystyle \textstyle \delta (t)} , ou seja:

d u ( t ) d t = δ ( t ) {\displaystyle {\frac {du(t)}{dt}}=\delta (t)}

Também lançamos mão dos seguintes conceitos de eletromagnetismo:

q ( t ) = 0 t i ( t ) d t {\displaystyle q(t)=\int _{0}^{t}i(t)dt}
d q ( t ) d t = i ( t ) i ( 0 ) = i ( t ) {\displaystyle {\frac {dq(t)}{dt}}=i(t)-i(0)=i(t)}

Onde utilizamos nossa primeira condição inicial: i ( 0 ) = 0 {\displaystyle \textstyle i(0)=0} .

Aplicando a transformada de Laplace em ambos os lados da equação:

L { d 2 i ( t ) d t 2 } + 2 L { d i ( t ) d t } + L { i ( t ) } = V 0 ( L { δ ( t a ) } L { δ ( t b ) } ) {\displaystyle {\mathcal {L}}\left\{{\frac {d^{2}i(t)}{dt^{2}}}\right\}+2{\mathcal {L}}\left\{{\frac {di(t)}{dt}}\right\}+{\mathcal {L}}\{i(t)\}=V_{0}({\mathcal {L}}\{\delta (t-a)\}-{\mathcal {L}}\{\delta (t-b)\})}
s 2 L { i ( t ) } s i ( 0 ) d i d t ( 0 ) + 2 s L { i ( t ) } 2 i ( 0 ) + L { i ( t ) } = V 0 ( e a s e b s ) {\displaystyle s^{2}{\mathcal {L}}\{i(t)\}-si(0)-{\frac {di}{dt}}(0)+2s{\mathcal {L}}\{i(t)\}-2i(0)+{\mathcal {L}}\{i(t)\}=V_{0}(e^{-as}-e^{-bs})}

Devido as condições iniciais, i ( 0 ) = 0 {\displaystyle \textstyle i(0)=0} e d i d t ( 0 ) = 0 {\displaystyle \textstyle {\frac {di}{dt}}(0)=0} a equação se reduz a:

s 2 L { i ( t ) } + 2 s L { i ( t ) } + L { i ( t ) } = V 0 ( e a s e b s ) {\displaystyle s^{2}{\mathcal {L}}\{i(t)\}+2s{\mathcal {L}}\{i(t)\}+{\mathcal {L}}\{i(t)\}=V_{0}(e^{-as}-e^{-bs})}

Isolando L { i ( t ) } {\displaystyle \textstyle {\mathcal {L}}\{i(t)\}} :

L { i ( t ) } ( s 2 + 2 s + 1 ) = V 0 ( e a s e b s ) {\displaystyle {\mathcal {L}}\{i(t)\}(s^{2}+2s+1)=V_{0}(e^{-as}-e^{-bs})}
L { i ( t ) } = V 0 ( e a s e b s ) ( s 2 + 2 s + 1 ) {\displaystyle {\mathcal {L}}\{i(t)\}={\frac {V_{0}(e^{-as}-e^{-bs})}{(s^{2}+2s+1)}}}

Manipulamos a equação de modo a chegar no formato de uma expressão tabelada:

Corrente devido a um pulso unitário entre t = 1 e t = 2 com V0 = 100V

L { i ( t ) } = V 0 e a s 1 ( s + 1 ) 2 V 0 e b s 1 ( s + 1 ) 2 {\displaystyle {\mathcal {L}}\{i(t)\}=V_{0}e^{-as}{\frac {1}{(s+1)^{2}}}-V_{0}e^{-bs}{\frac {1}{(s+1)^{2}}}}

Aplicando a transformada inversa:

i ( t ) = V 0 L 1 { e a s 1 ( s + 1 ) 2 } V 0 L 1 { e b s 1 ( s + 1 ) 2 } {\displaystyle i(t)=V_{0}{\mathcal {L}}^{-1}\left\{e^{-as}{\frac {1}{(s+1)^{2}}}\right\}-V_{0}{\mathcal {L}}^{-1}\left\{e^{-bs}{\frac {1}{(s+1)^{2}}}\right\}}

Consultando uma tabela de transformadas de Laplace, obtemos o resultado:

i ( t ) = V 0 u ( t a ) ( t a ) e ( t a ) V 0 u ( t b ) ( t b ) e ( t b ) {\displaystyle i(t)=V_{0}u(t-a)(t-a)e^{-(t-a)}-V_{0}u(t-b)(t-b)e^{-(t-b)}}

Onde utilizamos a propriedade do deslocamento no eixo t e deslocamento no eixo s

Ver também

Referências

  1. Coddington, Earl A.; Levinson, Norman (1955). Theory of ordinary differential equations. New York-Toronto-London: McGraw-Hill Book Company, Inc. (Teorema 1.3)
  2. Robinson, James C. (2001). Infinite-dimensional dynamical systems: An introduction to dissipative parabolic PDEs and the theory of global attractors. Cambridge: Cambridge University Press. (Teorema 2.6)